O preconceito nosso de cada dia
Infelizmente, tragédias acontecem em todos os lugares do mundo e todo o tempo, todavia só assombram e causam realmente grande comoção social, quando o número de vítimas é elevado. É uma lógica fúnebre! No entanto, o maior problema é ter consciência que todo esse debate sobre o assunto e os discursos envolvendo os motivos e consequências do ato bárbaro, desaparecerão no mesmo instante em que a imprensa considerar que já não lucra mais com a explanação do fato. Já as vítimas reais desta tragédia estarão condenadas para o resto de suas vidas a tentar entender o porquê de terem sido as escolhidas para uma provação tão cruel e injusta!
Nenhuma palavra dita aqui, ou em qualquer outra coluna, descreverá tamanho ato bárbaro ocorrido em Realengo, mas há de se buscar esclarecimentos, tanto para o assassinato em massa (é necessário entendê-lo, mais que chamar o criminoso erroneamente de psicopata) quanto para como ele conseguiu armas, treinamento e munições.
Mas não é exatamente sobre o massacre que quero escrever. Sobre o incidente em si, você caro leitor, já viu, ouviu e leu o suficiente. Quero, na verdade, tratar de um tema, tão perigoso que pode incitar outros atentados. Meu foco é a cobertura da imprensa.
Assim que soube do massacre pelo telefone, passei a acompanhar as notícias em tempo real pela internet, afinal eram 11 horas da manhã e não poderia ir para casa correndo (tinha que cumprir horário em na escola). Contudo, rigorosamente as 11h30min (horário em que acaba meu turno de trabalho na melhor escola do Baixo Sul, o Colégio Estadual João Cardoso dos Santos) corri para casa na intenção de acompanhar tudo pela TV. Com muito bom grado, e infelizmente, obtive quantidade e não qualidade de informações. Não faltaram notícias inúteis e sensacionalistas!
E olhem que não liguei a TV nos programas sanguinolentos do fim de tarde, àqueles cujos apresentadores gritam sem parar enquanto mostram imagens bizarras e clamam por cenas cada vez mais fortes. Não, eu estava sintonizado num canal exclusivamente de notícias, imaginando que nele obteria informações de maneira mais fria e analítica. Ledo engano. Foi uma enxurrada de despautérios arquitetados imediatamente em cima da notícia, com uma enorme carga de sensacionalismo, desrespeito e oportunismo que, claro, muito mais reforça os estereótipos do que explicam a tragédia.
Jornalistas (e não faltaram alguns que se diziam “especialistas” no tema) buscavam qualquer explicação (qualquer uma, mesmo!) que pudesse explicar o fato. No começo da tarde, o atirador era rotulado como “ateu”, como se isso fosse mesmo premissa para ser um assassino. Um crime dessa magnitude só poderia ser praticado por alguém descrente, portanto, um monstro, não é mesmo? Baseado em conhecimento histórico nada acadêmico, Datena proferiu a frase: “quem acredita em Deus não faz uma dessas”. Bastaram algumas horas para se saber que o atirador era sim temente a Deus e que descendia de uma família de Testemunhas de Jeová.
Depois, mobilizando ainda mais preconceitos, especulou-se que o criminoso fosse muçulmano. Quem mais além de um ateu poderia cometer tamanha atrocidade? “Apenas um muçulmano poderia desgraçar tantos!” Afinal de contas, reza o preconceito ocidental, que esse povo esquisito só pratica maldades no mundo. Assim, durante alguns minutos, o atentado passou a ser tratado em alguns canais como um ato terrorista.
Bastou uma irmã de criação pronunciar a frase: “...ele era esquisito e estava com a barba muito grande”, para que fossem confirmadas as suspeitas. A fim de induzir a entrevistada, um jornalista insistiu: “Mas ele falou alguma coisa de religião… de muçulmano?”. A irmã, totalmente abalada pela situação, apenas repetiu que Wellington era estranho e que falava estas besteiras de muçulmano.
Após algumas horas, já se dizia que o assassino sofria de alguma moléstia grave, quiçá fosse HIV positivo. Segundo a imprensa bastaria que rapaz fosse ateu, mulçumano ou soropositivo para que a situação fosse compreendida. Mas, acredito que a torcida geral dos redatores é que ele fosse as três, simultaneamente.
Um desses “especialistas” foi mais além e “detectou”, pelas roupas que o assassino vestia (coturno e calça verde) que certamente se tratava de um membro de organizações fundamentalistas, claro, mulçumano. Recrutado por estas facções, ele foi escolhido para ação porque tinha HIV e precisava se “limpar” no tal “ato terrorista”.
Pronto, simples assim. Em duas ou três horas de cobertura “alá Mãe Diná” , cercada de “especialistas”, o retrato foi feito. Mas, a realidade, como vimos horas depois, não se encaixou a tais teorias. O problema que vejo com a tese feita e divulgada a milhões de pessoas é que a mesma estimula preconceitos, espalha desinformação e ódio. Não eram exatamente esses sentimentos que deveríamos evitar, principalmente num momento como aquele?